Um dos capoeiristas mais falados pelos antigos
tinha o nome de Samuel Querido de Deus. Era considerado imbatível nas rodas,
temido por todos os capoeiristas. Seu nome não chegou tão famoso aos dias de
hoje quanto os de Pastinha ou Bimba, já que esses tinham academias no centro,
inovaram a capoeira e fizeram discípulos que divulgaram seus ensinamentos. Mas
Querido de Deus também entrou para a história, impressionando o povo da
capoeira e intelectuais e estudiosos da nossa arte daquela época (estamos
falando das décadas de 30 e 40).
Para descrevê-lo,
nada melhor do que chamar Jorge Amado. Ele conta no seu Bahia de Todos os
Santos como era Samuel:
"Já começaram
os fios de cabelo branco na carapinha de Samuel Querido de Deus. Sua cor é
indefinida. Mulato, com certeza. Mas mulato claro ou mulato escuro, bronzeado
pelo sangue indígena ou com traços de italiano no rosto anguloso? Quem sabe? Os
ventos do mar nas pescarias deram ao rosto do Querido de Deus essa cor que não
é igual a nenhuma cor conhecida, nova para todos os pintores. Ele parte com seu
barco para os mares do sul do estado onde é farto o peixe.
Quantos anos terá?
É impossível saber nesse cais da Bahia, pois de há muitos anos que o saveiro de
Samuel atravessa o quebra-mar para voltar, dias depois, com peixe para a banca
do mercado Modelo. Mas o velhos canoeiros poderão informar que mais de sessenta
invernos já se passaram desde que Samuel nasceu. Pois sua cabeça já não tem
fios brancos na carapinha que parece eternamente molhada de água do mar? Mais
de sessenta anos. Com certeza. Porém ainda assim, não há melhor jogador de
capoeira, pelas festas de Nossa Senhora da Conceição da Praia, na primeira
semana de dezembro, que o Querido de Deus.
Que venha Juvenal,
jovem de vinte anos, que venha o mais ágil, o mais técnico, que venha qualquer
um, e Samuel, o Querido de Deus, mostra que ainda é o rei da capoeira da Bahia
de Todos os Santos. Os demais são seus discípulos e ainda olham espantados
quando ele se atira no rabo-de-arraia, porque elegância assim nunca se
viu..."
Também a
antropóloga americana Ruth Landes, que fez um trabalho maravilhoso estudando o
candomblé em Salvador no ano de 1938, assistiu acompanhada de Edison Carneiro a
um jogo de capoeira de Samuel com Onça Preta e descreve o jogo em detalhes no
seu livro "A cidade das mulheres". Lá, ela conta que ele era
"alto, mulato, de meia-idade, musculoso e pescador de profissão".
Edison Carneiro
considerava-o "o melhor capoeirista que já se viu". Antônio Lberac
Pires nos mostra um artigo do Jornal "O Estado da Bahia" de 13
fevereiro de 1937, no qual está escrito que no Segundo Congresso
Afro-Brasileiro, realizado em Salvador, quem comandou a apresentação de
capoeira foi Querido-de-Deus, "considerado pelos outros capoeiristas como
o melhor entre eles". E também, é claro, ele é citado no essencial livro
"Capoeira Angola", de Waldeloir Rêgo.